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Tradição é o improviso que deu certo
O conclave nasceu da pressão, a fumaça da dúvida, e até a renúncia precisou ser inventada no susto
Nem só de marketing e Inteligência Artificial vive essa newsletter. Apesar de eu ter focado mais nesses dois assuntos nos últimos tempos.
Com a eleição do novo papa, e o assunto do conclave ter virado mainstream, eu me perguntei como que isso tinha começado. Já que é uma tradição de séculos, que mexe com o mundo todo.
Tem gente que acha que tradições nascem prontas, planejadas, desenhadas para atravessar os séculos. Mas basta olhar para a história do conclave (essa cerimônia fechada e silenciosa que define o novo papa) para ver que muita tradição começa no improviso, vira norma por insistência e só depois ganha ares de ritual eterno.

Quando trancaram os cardeais com chave (literalmente)
Até o termo conclave vem de “com chave”. E os cardeais que são trancados hoje, para não terem interferência externa, começaram a tradição na base do castigo.
Em 1268, após a morte do papa Clemente IV, os cardeais se reuniram na cidade de Viterbo para eleger seu sucessor. O problema? Passaram quase três anos discutindo sem chegar a um nome.
A cidade cansou. Trancaram os cardeais em um palácio. Reduziram as refeições. E, como isso não bastou, arrancaram o telhado para ver se o frio e a chuva ajudavam na inspiração divina.
O que era desespero virou tradição.
Em 1274, o papa Gregório X formalizou o conclave com a bula Ubi periculum: os cardeais passariam a ser oficialmente isolados com chave até tomarem uma decisão.

O eremita que virou Papa… E depois desistiu
Em 1294, duas décadas após o conclave de Viterbo, a história quase se repetiu. O trono papal estava vago havia dois anos e os cardeais, novamente, não conseguiam se entender. Até que alguém sugeriu um nome improvável: Pietro da Morrone. Um eremita idoso, monge beneditino, que vivia em oração nas montanhas.
Ele resistiu, fugiu, chorou. Mas foi convencido por uma comitiva de cardeais (e do rei Carlos II de Anjou). Tornou-se o papa Celestino V.
Só que Pietro não se adaptou ao cargo. Se sentia manipulado politicamente. Sofria com a burocracia. E sentia saudade da solidão da montanha.
Então fez algo inédito: antes de renunciar, decretou que um papa podia renunciar. Uma semana depois, em 13 de dezembro de 1294, abdicou oficialmente. Na prática, criou o precedente para algo que a Igreja nem sabia como lidar, e moldou a tradição com um gesto de recuo.
Recentemente,C o Papa Bento XVI aproveitou esse decreto quando quis deixar o cargo.

Até a fumaça começou como acidente
Hoje, quando um papa é eleito, todo mundo olha para a chaminé da Capela Sistina esperando a fumaça branca. Mas esse símbolo também não nasceu como tradição.
Desde o século XV, os votos dos cardeais eram queimados após cada escrutínio. A fumaça saía (às vezes branca, às vezes escura) dependendo do tipo de papel, da umidade e da sorte.
No século XIX começaram a usar palha seca para gerar fumaça branca e palha úmida ou breu para produzir fumaça escura. Só em 1914 a fumaça branca foi reconhecida oficialmente como sinal de que temos papa.
Depois de muitas confusões, especialmente em 1958, o Vaticano padronizou fórmulas químicas para garantir as cores certas. Hoje, a fumaça vem acompanhada dos sinos da Basílica de São Pedro. Ninguém mais precisa adivinhar.

Porque Isso Importa
Tradições não nascem com cara de tradição. Muitas surgem no improviso, no caos, na tentativa de resolver o agora. O conclave, a fumaça, a renúncia papal, tudo isso começou como reação, não como ritual.
Mas foi justamente o acúmulo dessas reações que moldou o que hoje chamamos de tradição. Não pelo seu começo perfeito, mas pela sua persistência e pelo significado que ganhou ao longo do tempo.
A tradição nem sempre nasce como regra. Às vezes, ela começa como gambiarra. E sobrevive porque funciona.