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Sabor do mês ou identidade de marca?

O perigo de seguir modinhas no automático e como construir marcas que resistem ao calor das tendências

A cada 3 posts no TikTok aparecia uma fruta reluzente como vidro em festa junina: o Morango do Amor. Em três dias, as buscas no Google explodiram ao ponto de superar qualquer outro doce da estação. Os dados confirmam o pico histórico em julho. Docerias relatam que 48 de cada 50 pedidos agora são dessa guloseima vermelha crocante. Lembra do pistache em 2023? As importações saltaram quase 100% e viraram capa de revista gastronômica. Coincidência? Nem um pouco.

O gatilho coletivo: Dopamina + rede social

Todo hype nasce de um estalo sensorial somado a um vídeo de 15 segundos. O “crack” da casquinha caramelizada, filmado em close-up, fornece o barulho que o algoritmo ama. No TikTok, conteúdo com a hashtag #MorangoDoAmor com dezenas de milhões de views.

Quando vemos esse “momento ASMR” repetido centenas de vezes, o cérebro antecipa a recompensa. É o mesmo mecanismo de uma notificação piscando, só que açucarado. E aí começa a cascata. Influenciadores provam, declarando “o melhor doce da vida”, portais de gastronomia publicam “a receita definitiva”, marcas correm para colocar o produto na vitrine, mesmo que não fizesse parte do portfólio ontem.

Quem alimenta (e por quê)?

  1. Influenciadores

    • Ganham cliques ao serem “os primeiros” a testar.

    • Trocam avaliações sinceras por “unboxings” coreografados.

  2. Empresas oportunistas

    • Criam a “linha do amor” em tempo recorde, trocando apenas corante e embalagem.

    • Surfam a onda da tendência momentânea em vez de construir valor duradouro.

  3. Consumidores

    • Adotam o doce como passaporte social: “comi, postei, participei”.

    • Sentem FOMO (medo de ficar de fora) se não encontrarem o sabor do momento na festa da firma.

Perceba o ciclo vicioso. Cada grupo reforça o outro, alimentados por curtidas e visualizações.

A anatomia da febre (em 4 estágios)

  1. Descoberta: Um criador quebra o morango na câmera, o som vira trilha.

  2. Repetição: Canais de culinária ensinam a “técnica perfeita” e até cientistas do Nunca Vi 1 Cientista explicam a cristalização do açúcar.

  3. Comercialização: Empresas lançam tudo “do Amor”, supermercados estampam embalagens cor-de-rosa.

  4. Saturação: Quando até o boteco de esquina vende (ovo cozido do amor?), o assunto esfria e o próximo sabor aparece.

Esse roteiro não é novo. O pistache seguiu o mesmo script. De “ingrediente gourmet” a recheio de panetone, ovo de Páscoa e até café “pistachiato”. Em um ano, o Brasil importou mais de mil toneladas da noz verde, alta de 80% sobre o ano anterior.

A lógica econômica do “Sabor do mês”

  • Baixo custo de entrada: mudar corante é mais barato que criar nova linha de produção.

  • Margem premium: o rótulo “edição limitada” justifica 30% a 50% de preço extra.

  • Pressão de vitrine: se o concorrente vende, você “não pode” ficar sem.

Mas também há riscos: estoque encalhado quando o interesse cai, desgaste de marca pela percepção de modismo e, o pior, diluição de identidade.

Como decidir se vale surfar a onda

Esse sabor encaixa na narrativa da minha marca ou estou apenas pintando a logo de vermelho?

Nem sempre você precisa correr para participar da tendência. À vezes pode não te ajudar muito ou até dar uma percepção ruim da sua marca, que vive só de correr atras de hype.

Use este mini-checklist antes de ceder à tentação:

  1. Fit de produto: O hype complementa ou canibaliza o mix atual?

  2. Prazo de validade: Posso esgotar o estoque antes que o interesse caia?

  3. História autêntica: Há um storytelling real (origem do ingrediente, causa social) ou só corante e glitter?

  4. Capacidade de produção: Consigo manter qualidade se as vendas decolarem 10x?

  5. Plano de saída: Como volto ao normal depois que a maré baixar?

Estratégias para aproveitar (sem perder a alma)

  • Edição colaborativa: convide um parceiro já associado ao ingrediente (ex.: fazenda de morangos orgânicos) e conte a jornada do campo à vitrine.

  • Conteúdo educativo: transforme a curiosidade em valor. Mostre o processo químico do caramelo ou os cuidados com a cadeia fria do pistache (isso as meninas do Nunca Vi 1 Cientista fizeram muito bem. Surfaram o Hype mas sabendo aproveitar do jeito delas.).

  • Limite voluntário: declare que só fará X unidades por semana; escassez controlada cria urgência e protege a reputação.

  • Pesquisa com o público fiel: pergunte antes. Se 70% disser “não é a cara de vocês”, recalcule a rota.

Identidade não entra em promoção

Nem todo mundo entra na onda. Enquanto algumas marcas correm para lançar versões "do amor", outras escolhem não se deixar levar pela euforia coletiva. Não por falta de coragem ou ousadia, mas por uma escolha estratégica: preservar o que as torna únicas. Em vez de trocar sua essência por curtidas instantâneas, elas apostam na coerência, na consistência e no relacionamento de longo prazo com seus clientes.

A sorveteria que mantém seu cardápio enxuto e autoral. A marca de café que prefere contar a história dos pequenos produtores a lançar frappés coloridos. A loja que ouve seu público antes de pintar a vitrine de rosa. Essas empresas talvez não ganhem a primeira página da internet, mas ganham algo ainda mais valioso: respeito, fidelidade e desejo duradouro.

É aí que mora a diferença entre participar de uma tendência, com intenção e propósito, e simplesmente se curvar a ela por medo de parecer desatualizado.

Pode fazer sentido para um fast food criar a tradição de toda Copa do Mundo ter sanduíches temáticos das seleções participantes. Mas nem por isso precisa lançar um Big Mac do Amor.

O consumo ansioso

Não são só empresas correndo. Consumidores entram em fila de horas, pagam R$ 23 num espetinho de morango e postam no mesmo minuto. Essa ansiedade é combustível, mas também armadilha: quando a experiência real não entrega o prazer prometido pelo vídeo (o crack não estala, a calda gruda), o backlash é imediato.

O Morango do Amor vai esfriar? Provavelmente. Um novo sabor (Speculoos? Côco queimado? Calamansi?) já ensaia sua entrada no palco. A questão é, sua empresa vai girar feito carrinho de parque de diversões, trocando algodão-doce por pipoca a cada esquina, ou vai ser aquela barraca clássica cujo churros todo mundo confia há 20 anos?

Minha aposta? Misture curiosidade e consistência na receita. Surfe as ondas que fizerem sentido e deixe as outras passarem. No fim, a lealdade do cliente tem um sabor que nenhum hype de temporada consegue replicar.