Na teoria, a Globo perde meio bilhão de reais por causa da pirataria. Pelo menos é o que dizem as manchetes: “Premiere atinge 2,7 milhões de assinantes com o Globoplay, mas ainda perde centenas de milhões com transmissões ilegais.” É o tipo de frase que parece sair direto da planilha de um vilão de filme corporativo: “Se todos pagassem, o faturamento poderia chegar a R$ 1 bilhão.”

Mas há um pequeno problema aí. Essa conta parte da suposição de que todo mundo que pirateia um jogo pagaria pelo Premiere se a pirataria simplesmente deixasse de existir. Como se o torcedor que vê o jogo no “FutebolzãoHD” fosse, por natureza, um cliente em potencial. Spoiler: ele não é.

E é exatamente esse tipo de raciocínio que distorce a visão de mercado de muita empresa, porque confunde o desejo de vender para todos com a realidade de quem realmente pode comprar.

O mercado imaginário e o mercado possível

Quando alguém fala sobre “quanto o mercado vale”, normalmente está falando do TAM — Total Addressable Market. O TAM é o número que brilha na reunião com investidores, o tamanho máximo do bolo, o mercado total teórico que existe.

No caso dessa falácia do Premiere, o TAM seriam todos os fãs de futebol do Brasil, já que é o país onde o serviço realmente está disponível. Poderíamos até imaginar que o torcedor argentino ou japonês faria parte disso, mas não. Esses mercados dependem de negociações específicas, licenças e direitos de transmissão em cada país, então ficam fora da conta.

O TAM é, portanto, o mercado total que existe na cabeça do sonhador, antes de considerar limitações geográficas, técnicas ou culturais. É o número que faz todo empreendedor pensar: “se eu pegar só 1% disso, já fico rico.”

O pedaço que dá pra alcançar

Aí chega o SAM — Serviceable Available Market, o mercado que a empresa realmente pode atender com os recursos e estrutura que tem hoje.

No caso do Premiere, o SAM seriam os brasileiros com acesso à internet, cartão de crédito e interesse real em acompanhar o campeonato inteiro, não só o time do coração. Quem prefere ver apenas os melhores momentos, ou ouvir o jogo no rádio, já fica de fora. Também sai da conta quem mora em áreas com internet instável ou quem compartilha a senha do cunhado.

Percebe? O bolo começa a encolher rápido. O SAM é o recorte mais pé-no-chão. Ainda é um público grande, mas não é mais um sonho. É um território possível.

O que dá pra conquistar de verdade

E aí chegamos ao mais realista dos três: o SOM — Serviceable Obtainable Market. O SOM é o mercado que a empresa realisticamente pode conquistar agora, levando em conta concorrência, preço, marketing e hábito de consumo.

No caso do Premiere, estamos falando de pessoas dispostas a pagar entre R$ 30 e R$ 60 por mês por um serviço de streaming esportivo. E sim, as opções gratuitas estão por aí, um pouco mais complicadas, mas suficientemente acessíveis para quem quer economizar. Isso muda tudo.

Porque o SOM não é sobre quantas pessoas gostam do produto, e sim quantas estão dispostas a pagar o preço que você cobra, sabendo que existem alternativas. Ele é o choque de realidade entre o plano de negócios e o comportamento humano.

A ilusão dos bilhões perdidos

A mesma lógica vale para o futebol, para o cinema, para a moda e até para o e-commerce. Quando a Nike diz que “perde bilhões com falsificações”, o que ela está realmente dizendo é que há milhões de pessoas vestindo seu logo sem jamais ter pago por ele.

Mas boa parte dessas pessoas nunca compraria uma camisa original de R$ 350, mesmo que as falsificadas sumissem do mapa. Elas simplesmente não têm esse dinheiro, ou esse interesse. Pagam R$ 100 na pirata porque é o que faz sentido para elas.

A Nike não está perdendo esses clientes. Ela nunca os teve. Eles não estão dentro do SAM, muito menos do SOM. São parte do TAM, o mercado total, teórico, onde a vontade de vender é maior que a realidade de compra.

Por que isso importa para qualquer negócio

Quando uma empresa confunde TAM com SOM, ela acaba inflando suas projeções, esticando metas e se frustrando no caminho. É como planejar o churrasco do bairro inteiro quando, na prática, só os vizinhos do prédio aparecem. O resto nunca esteve na lista de convidados.

Compreender o tamanho real do mercado é o que separa ambição de ilusão. O TAM serve para inspirar, o SAM para planejar e o SOM para agir. É no SOM que a empresa vive, fatura e cresce.

O mercado real vive no chão, não no PowerPoint

A Globo não perde meio bilhão por causa da pirataria, e a Nike não perde bilhões por causa das falsificações. O que existe são mercados paralelos, compostos por pessoas que não fariam parte do público pagante de qualquer forma.

Claro que tem como você aumentar o seu SOM. Se o maior problema para consumirem algo que você vende é o preço, você pode dar desconto na assinatura anual, ou até desmembrar o pay-per-view para quem quiser assinar só os jogos do seu time, pagando menos.

Tem uma empresa de games que ZEROU a pirataria no Brasil. Não foi criando maneiras mais difíceis de piratear. Foi deixando o jogo tão acessível que não valia a pena ter trabalho de dar um jeito ilegal de jogar o Heartbound. Era muito mais fácil comprar barato direto no Steam. Ah, e mesmo assim, o Brasil foi responsável por 25% do faturamento da empresa. Baixaram o preço, zeraram a pirataria e faturaram mais.

Empresas sólidas crescem quando entendem que o mercado total não é o que se quer conquistar, mas o que se pode realmente servir. E tudo bem que nem todo mundo vá pagar. O segredo está em dominar o espaço onde o desejo encontra o bolso, ou inventar maneiras de alcançar mais gente.

Então, da próxima vez que alguém disser “se todo mundo pagasse…”, lembre-se: nem todo mundo é seu cliente. E talvez essa seja a melhor notícia do dia.

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